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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #223 (António Guerreiro): O paradigma criminológico

Uma personagem de uma peça de Jules Romain, o doutor Knock, tinha uma tese com a qual anunciava o triunfo da medicina: "As pessoas saudáveis são doentes que se ignoram enquanto tal." Ele achava que era só por falta de controle que os doentes podiam passar por gente saudável. E esta lógica estendeu-se a todos os domínios: o contribuinte é um indivíduo fraudulento que não ousa dizer o seu nome, o professor é um inepto dissimulado no lugar do saber, o intelectual é, por definição, um pseudointelectual, o médico é um indivíduo que está ausente do hospital, o lugar onde é pago para exercer, etc. Estamos assim em pleno paradigma criminológico, através do qual se fabricam doentes, suspeitos, ignorantes e párias. Para a proliferação destas espécies indesejáveis muito contribuiu a atual ideologia da avaliação, que dispõe hoje de instrumentos afinadíssimos e de uso universal. As maiores vítimas deste processo são aqueles que, no exercício da sua profissão, tinham aquilo a que podemos chamar autonomia intelectual. Um professor do secundário (ou, recuando, do liceu) tinha-a em razoável medida; um professor universitário tinha-a totalmente. O preço a pagar era a impunidade dos medíocres e e dos loucos. Mas, em compensação, não se aniquilava o espaço de pensamento crítico.  

A normalização a todos os níveis que o avaliacionismo promove com obstinação serve não tanto para perseguir a incompetência e o mal mas para rasurar o que de bom existe e não cabe nas grelhas da avaliação. Aparentemente, toda a gente, hoje, perdeu a autonomia - que foi uma palavra mágica, tal como outra da sua família, 'emancipação'. Mas se ninguém tem autonomia (parece que nem os chefes, os diretores, os gestores, os patrões), o que é feito dela? Não existe em nenhum lado. Porque somos governados pelas coisas e só existe uma política das coisas. E, para a políticca das coisas, todo o indivíduo é um alvo.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 22.12.2012.

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