Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #216 (António Guerreiro): Mais tempo, menos história

Devemos olhar com muita impaciência e pouca tolerância o modo como os políticos procuram legitimar a sua ação e justificar os seus erros regressando sempre ao passado imediato e aos seus antecessores. Não só porque há sempre aí uma razão fraudulenta que consiste em selecionar ad hoc a história que lhes interessa e nos limites cronológicos que servem para a justificação, mas sobretudo porque isso faz dos políticos profetas virados para o passado, incapazes de verdadeiramente apreender o seu tempo e de ter a coragem e a sabedoria de serem contemporâneos. Nesta errância que os leva a sacar do passado recente como quem saca da pistola, há um fator de esterilização do discurso e de impotência da ação. Esse impulso, que já há muito tempo ultrapassou os limites do razoável e arrastou o discurso político para as regiões ínferas do mesquinho (aí, onde o pântano cresce), é a manifestação dramática — às vezes, de um dramma giocoso — de que os políticos que assim agem (e não é fácil encontrar exceções) não estão à altura da exigência mais própria e mais urgente de toda a política: a de saber manter o olhar fixo no seu tempo, não para o apreender nos seus aspetos evidentes, luminosos, mas para perceber o que nele há de escuro.  

Apreender a ocasião contida no tempo, aquilo a que a sabedoria grega chamava o kairos (o tempo de agora e não o tempo de então), antes que ela seja mais uma vez traída por saltos no tempo (de pulgas e não de tigres), é a única tarefa política digna desse nome, capaz de nos salvar de exercícios mesquinhos amplificados na forma do espetáculo. Em tempos, o artista americano Robert Rauschenberg, numa entrevista, reclamou para os artistas “mais tempo, menos história”. Devemos reatualizar esta reivindicação, trazê-la para o campo da política e saber ver em cada segundo que passa a força de uma presença — e não de uma história — inaudita: um tempo messiânico.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 3.11.2012.

Sem comentários:


Arquivo / Archive