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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #209 (António Guerreiro): A anatomia masculina do crime

Com uma cadência regular e nada lenta chega a notícia de que mais uma mulher foi morta por um homem: marido, namorado, companheiro, amante e demais espécies masculinas de grande vulnerabilidade passional. Alguns matam-se, depois de matarem, ou entregam-se à polícia. Raras vezes temos a notícia de que uma mulher matou um homem e, quando tal acontece, há geralmente uma longa história de maus tratos que se interpõe. Se toda a violência exercida pelos homens sobre as mulheres fosse castigada, o cárcere seria a morada permanente de uma parte considerável dos machos humanos. Ainda assim, à conta de outros crimes que não são tipificados como masculinos, as prisões estão cheias de homens – a população carceral feminina é uma pequeníssima minoria. Dizem-nos que as escolas são lugares de grande violência. Mas falta acrescentar: são sobretudo lugares de violência masculina, com uma incidência enorme de insucesso dos rapazes relativamente ao das raparigas. Mal ganharam liberdades e direitos, as mulheres encheram as universidades, tanto quanto os homens enchem as prisões e os lugares obscuros onde se chega sempre em queda.  
A dominação masculina, baseada em algo que se transmitiu como um ‘direito natural’, tem por sua conta uma história tão infame e criminosa que, comparados com ela, os grandes genocídios são notas de rodapé no livro negro dos terrores. E, no entanto, perante este irreparável, a ideia de uma “guerra dos sexos” nunca teve e continua a não ter outra conotação que não seja a que diz respeito à questão metafísica (mesmo muito metafísica) da diferença sexual. Outrora, a afirmação feminista foi muitas vezes acusada de decalcar a lógica da luta de classes e, por essa via, entrar no radicalismo. Mas se imaginássemos uma resposta do feminismo à altura da realidade com que ele se confrontou, teríamos de achar plausível a hipótese de vivermos numa guerra civil sem tréguas até ao dia do Juízo Final.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 15.9.2012.

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