Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O espectador ocioso #3: Em Dvd?

Tomemos, como exemplo, este primeiro dia do mês de Outubro do ano de 2007 na cidade de Lisboa. Um espectador ocioso, talvez cinéfilo cultivador de raridades esquisitas, podia ser levado a dirigir-se ao Instituto Italiano de Cultura, ali para os lados do Rato, onde, num relativamente promovido ciclo de cinema chamado «O’Cinema – Rassegna sulla nuova cinematografia partenopea», estava programada a Morte di un matematico napoletano (1992) de Mario Martone pelas 19 horas. No dia anterior tinha havido inclusive uma apresentação pelo “director artístico” do ciclo, o Sr. Giulio Gargia, bem como do Juiz Luigi Mazzella sobre o tema «Cinema e empenho [?]», seguidas de um cocktail, a que lamentavelmente faltou. Ao chegar à sala, repara numa série de pessoas a ver televisão através de um projector vídeo. A projecção do filme seguir-se-ia, dizem-lhe. Mas, desconfiado, e não vendo à sua volta equipamento de projecção, o espectador dirige-se à jovem senhora italiana que o tinha anteriormente orientado para a sala. Pergunta-lhe se, por mero acaso, a projecção não será eventualmente em vídeo, quer dizer, pior ainda, de Dvd. A senhora demora um pouco a perceber a questão, como se nunca tivesse reparado na diferença que este espectador, talvez desactualizadamente, tentava estabelecer entre projecção de película e de Dvd. Que sim, que era de Dvd. Ah! O espectador esboça um sorriso, só acessível aos verdadeiramente ociosos, e sugere delicadamente à senhora italiana que talvez não fosse má ideia mencionar no programa, por sinal com uns tons de azul tão bonitos, que a projecção ia ser, precisamente, de Dvd. E que em português havia uma expressão muito gira, talvez a senhora italiana não conhecesse, que é a de «gato por lebre», que podia talvez ser usada para descrever a situação, apesar da generosa entrada gratuita. Ao descer as escadas, o exigente espectador pensa para si próprio que, se quiser ver um Dvd, ainda que raro mas, pelos vistos, provavelmente existente para empréstimo no Instituto Italiano, o vê em casa. Outros espectadores que estejam nas tintas para tais subtilezas fiquem informados que, para os dias seguintes, está mesmo prevista a presença de dois realizadores italianos que, presume-se, virão de propósito de Itália para apresentar os seus filmes... em Dvd? Viajar de tão longe para apresentar um Dvd. Hum, certamente mais um pequeno passo para o homem, mas outro grande passo para a humanidade. Enfim, uma questão de pequena resolução...
Ainda mal refeito da experiência, o espectador adiado encontra uns amigos numa café nessa mesma rua, a quem explica o ocorrido. O olhar que lhe lançam é o de quem também nunca tinha reparado na diferença entre película e projecção vídeo. E que é um pouco fazer uma tempestade num copo de água o abandonar da sessão por tal coisa. O espectador resmunga que é a mesma estória dos homenzinhos gorduchos a jogar à bola nos ecrãs panorâmicos. As pessoas preferem ver as jogadas bonitas e as subtilezas tácticas todas deformadas, ao invés de suportar umas listas pretas nas margens verticais ecrã. Porque, diz, hoje em dia já se perdeu todo o sentido das proporções...
Também muito recentemente, um projeccionista interrogado, por mera curiosidade póstuma, acerca do facto de uma série de curtas metragens terem passado todas deformadas, respondeu que tal era devido a se tratar de um “formato digital”. O espectador folgou muito em saber, e aquele palavrão tinha o inconfundível sabor de álibi perfeito para o, cito, “resize” que foi necessário fazer a todos aqueles filmes curtos. Senão dava uma trabalheira, imaginou o espectador...
Depois da experiência das 19 horas, um espectador demasiado crédulo podia ser levado a dirigir-se depois à Casa da América Latina, ali no meio da 24 de Julho, para rever Los olvidados (1950) de Buñuel, pelas 21 horas e 30 minutos mais ou menos. Mas este particular espectador resolveu desencantar o número de telefone da dita Casa e, ao fim de duas tentativas, foi-lhe dito, por uma senhora de expressão vocal latino-americana, que sim, que a projecção era (também) de Dvd. Pois, “gato por lebre” também para a senhora latino-americana...
Pergunto-me o que levará estes e outros institutos culturais de promoção estrangeira, que se querem respeitáveis, mas também outras associações culturais bem intencionadas, a passar filmes assim à bruta, por vezes até em ficheiros .avi com uma resolução miserável. Que a Videoteca o faça, mostrar filmes em vídeo, compreende-se, pois o próprio nome parece autorizá-la. Procedimento que, diga-se, até se justifica quando se trata de mostrar uma determinada raridade cinematográfica ou um filme que esteja danificano no seu formato original. Como, por exemplo, os filmes de Santiago Álvarez, que custaria trazer de Cuba por tão pouco, e alguns outros. Mas filmes que passam constantemente na televisão? Não é isso afinal o que estas programações, em geral tão pobres de programa, procuram? Uma experiência colectiva de televisão fora de casa? Cruz credo! Há coisas que só se devem fazer no recato do lar. No espaço público são manifestamente uma perversão. Imaginem agora o grau da dita no Metropolitano ou nos shoppings. Mas afinal quando é que acabam com as ruas, o céu, a chuva e as árvores e colocam uma cobertura multimédia impermeável em toda a cidade? Que quentinho que vai ser...
É por estas e por outras que, mesmo os que não o queriam, se vêem um dia com focinhos de rato, de ratos de Cinemateca. Pelo menos na Cinemateca, com a sua programação talvez não demasiado audaz, mas certamente sábia, sóbria e respeitadora, existe a regra escrita, e a autoridade (e o dinheiro) para a fazer cumprir, de passar as obras cinematográficas e videográficas no formato original. Regra quebrada apenas muito excepcionalmente, quando a raridade das obras o impõe, como foi o caso das séries para televisão de Rossellini.
A verdade é que, na generalidade destas programações avulso que se encontram por Lisboa, o filme em si, naquela que é a sua matéria específica, não interessa quase nada, submetido que está ao desejos de programação e promoção imprecisos.
Gostaríamos de crer que um dia estes (filmes) vencidos voltarão vitoriosos do olvido. Mas nada é menos certo. Aliás, cada vez parece mais que o que enterrado vivo foi, lá permanecerá. A não ser que alguns o arranquem da terra com raízes e tudo. E que outros lhes ganhem o gosto. Ora, é sabido que o Dvd, apesar de todos os extras, ainda não vem com raízes...

Com legendas

« C’est ainsi qu’on a envisagé...



[de memória]

O espectador ocioso #2: Sem legendas

(sem imagem)

Como quase sempre, naquela tarde em que me dirigia afogueado ao Instituto Franco-Português para ver um filme, estava atrasado. São tantas as vezes que isto me acontece que tenho até o projecto, daqueles que nos consolam apesar ou precisamente por serem ultimamente irrealizáveis, de escrever um livro chamado «5 minutos de atraso», que trataria apenas desses fulcrais primeiros planos que nunca vi nos filmes que amo. (Nos meus sonhos complacentes, o título do livro ficaria igualmente bem em inglês - «5 minutes late» - e em francês - «5 minutes de retard»).
Mas, daquela vez, a sessão, apesar do meu espectacular atraso, não tinha sequer começado. A sala estava ainda comummente iluminada. Na verdade, nem espectadores ansiosos se avistavam. Certo que era apenas um obscuro filme russo (aliás, soviético) num ciclo sobre os «Cahiers du cinéma» no IFP, o que convenhamos não tem o condão de atrair assim tanta gente quanto devia. Mas, nem mesmo alguém?
Reconheço um funcionário de passagem e pergunto abismado pelo que se passa. O gentil senhor explica-me que a cópia tinha chegado a tempo da França mas, surpreendentemente, sem qualquer tipo de legendagem e que, como a língua russa ainda não é compreensível para a população geral, tinham por isso decidido cancelar a sessão. Num daqueles gestos de evidência que um quase louco pode ter, (quase) implorei ao senhor que projectasse o filme mesmo assim, que não fazia mal que os demais espectadores já tivessem abandonado o local, que a um filme não faziam falta nenhuma aquelas letras que nos fazem perceber a estória, que há muita música no timbre apenas das vozes, nas imagens, e outras teorias esfarrapadas que encontrei para fazer vencer a minha urgente vontade, que era apenas a de ver aquele filme soviético, que mais ninguém queria ver assim, naquele preciso momento. Acossado ou piedoso, o funcionário cedeu, quando outra espectadora mais hesitante, embora ainda mais atrasada, juntou o seu olhar muito levemente suplicante à minha ladainha. Foi assim que vi, com mais dois ou três felizes inocentes, o belíssimo de chorar Alenka (1961) de Boris Barnet.
Ah, sim, conhecia aqueles camiões de caixa aberta que atravessavam a estepe soviética de alguma parte, rasgando as cores daquela singular película soviética. Não senhor, não era apenas vermelho comunista o que tinha de especial aquela película. Todas as outras cores pareciam vir de um mundo de fadas, que sabemos bem não o era. Donde conhecia eu aqueles camiões a passarem dum lado para o outro? Pois era, claro, das Histoire(s) du cinéma, que, antes de tudo o resto, são a mais generosa forma de rememoração cinematográfica, reinvestindo de esplendor cada pedaço de filme e tornando, pelo menos na minha confusa memória, inseparáveis os filmes originais e as suas evocações por Godard. (Veja-se o Duel in the sun de King Vidor, com a Jennifer Jones e o Gregory Peck, também na saturada maquinação rítmica de Godard, aos tiros e beijos até à morte num monte poeirento).
Por causa das coisas, uma vez no Porto, feito parvo, teimei em público com Raymond Bellour que o Godard utilizava um excerto do Pelechian nas Histoire(s). Claro que era ele que tinha razão, quando dizia “olhe que não!” Bem procurava cima abaixo nas minhas vhs copiadas das Histoire(s), o que deu cá um trabalho, mas nada encontrava daquele pedaço de Pelechian levado a órgão que conhecia tão bem. Mas, como depois mostrei, o Bellour só tinha razão na parábola, na realidade era eu que tinha razão (ou o inverso) , como se diz no Nouvelle vague a propósito de Kafka. O Menk (1969) de Pelechian é maquinado numa parte de Les enfants jouent à la Russie (1993), episódio russo preparatório das Histoire(s).
Assim, desta vez fui confirmar academicamente se estes camiões tinham realmente atravessado a tundra godardiana. A útil partitura das Histoire(s), feita por Céline Scemama, confirma que o episódio 1b Une histoire seule inclui, ao minuto 4’03, as seguintes imagens: «Voyage dans la steppe à l’arrière d’un camion dans Alenka (Barnet, 1961) : une femme et un enfant, la tête recouverte d’un foulard; sur la route poussiéreuse, l’ombre d’autres camions passant dans la perpendiculaire à l’horizon/ noir /». [Um amigo solicito fez-me notar (eu já não me lembrava) que um excerto de Alenka aparece igualmente aos 4'15'' da Origine du XXIème siècle (2000), de início misturada com um travelling de Shining e acompanhada a música de piano]. É certo que não percebi nada bem o que levava a pequena Alenka àquelas paragens, nem os diálogos tão pedagógicos que mantinham as personagens que viajavam em cima do camião, nem as subtilezas da estória tão imbricada naquela outra história soviética de kolkhozes e sovkhozes, hoje enterrada, mas um dia também ela por repensar, e que ainda aprendi nas longínquas aulas de “geografia”, ou “meio físico e social” ou outra qualquer coisa assim, da escola secundária.
Sobre ver filmes em línguas estrangeiras de fonética incompreensível, e sem legendas também elas compreensíveis, tem o Abbas Kiarostami uma estória gira, embora não inocente. Conta ele algures, não me lembro onde, que teria visto em Paris um filme de Bergman [corrige-me um amigo dizendo que é um filme de Fellini, mas gosto muito mais da coisa com Bergman; parece-me que a estória funciona melhor] e que não tinha percebido nada, construindo a estória do filme na sua própria cabeça (que é, na verdade, onde ela deve ser feita); e que, um dia mais tarde, teria visto o filme de forma normalmente compreensível e tinha achado que a sua versão era bastante melhor que a original. Como não haveria de ser? Trata-se sem dúvida de uma estória muito pedagógica sobre a construção da narração no cinema, por esse mestre da perversão que é Kiarostami.
Recentemente tive uma experiência aproximável com o filme Senhsucht (2006) de Valeska Grisebach, que vi numa cópia dvd sem quaisquer legendas. Como não compreendo a língua alemã, à natural ambiguidade deste perturbante filme juntou-se o acrescento da que foi criada pela minha própria imaginação, que tantas vez prefere ser alimentada pelos frutos da ignorância. Fiquei tão feliz por não saber se as personagens tinham ou não morrido, das motivações específicas de cada uma delas, que a própria manifestação do dilema se visse ou ouvisse para lá dos corpos e das paisagens, ou quem tinha acabado por ficar com quem afinal. Era tão mais justo! Para mais, o filme tem um epílogo com umas crianças a discutirem precisamente as versões míticas da estória narrada, sobre o que se teria realmente passado, etc., procurando fomentar a ambiguidade, num final em aberto, chamam-lhe assim. Pois eu acho que devia haver uma versão do filme para todos os não-falantes do alemão, que não incluiria este epílogo, pois a bendita confusão estava já completamente ganha. Aliás, cada vez que leio uma sinopse deste filme não consigo conter a minha desilusão perante a redução que operam naquilo que eu (não) entendi. Não tendo percebido nada, inclui afinal muito mais. Por isso, muito cuidado com o que desejam perceber.


Alenka (1961) de Boris Barnet
Sábado, dia 29, 19h, na Cinemateca perto de si, espero

Humor biopolítico

«Idealmente, a vigilância veterinária deveria incluir os animais selvagens, e não apenas os animais domésticos.»
de um artigo sobre epidemias animais no Le Monde


Dobragem | Doblage


Johnny Guitar (1954) Nicholas Ray
5ª, dia 20, 19h30 - Cinemateca
excerto de margaloca

JOHNNY How many men have you forgotten?
VIENNA As many women as you've remembered.
JOHNNY Don't go away.
VIENNA I haven't moved.
JOHNNY Tell me something nice.
VIENNA Sure, what do you want to hear?
JOHNNY Lie to me. Tell me all these years you've waited. Tell me.
VIENNA [without feeling] All those years I've waited.
JOHNNY Tell me you'd a-died if I hadn't come back.
VIENNA [without feeling] I woulda died if you hadn't come back.
JOHNNY Tell me you still love me like I love you.
VIENNA [without feeling] I still love you like you love me.
JOHNNY [bitterly] Thanks. Thanks a lot.

com Sterling Hayden (Johnny "Guitar" Logan) e Joan Crawford (Vienna)
Mujeres al borde de un ataque de nervios (1988) Pedro Almodóvar
4ª, dia 26, 21h30 - Cinemateca corrigido

«El personaje de Carmen Maura debe ir a doblar escenas de Johnny Guitar, ella es la voz de la terrible Viena (Joan Crawford) y él la de Johnny Logan (el tierno Sterling Hayden). Mi intención no era rendirle homenaje a esa obra maestra de Nicholas Ray (aunque se lo merece, pero los homenajes gratuitos sobrecargan la narración) sino la de apropiarme de uno de los diálogos más románticos escritos para cine. Las célebres líneas: “Mentime y decime que me esperaste todos estos años... Decime que estarías muerto si yo no hubiera vuelto... Decime que todavía me amás como lo hago yo”...
Carmen debe grabar su parlamento sola, ya que Iván (su amante) dejó grabada su parte sin esperarla. Ella escucha en los audífonos el sonido de la voz de su antiguo amante que le dice que no la olvidó, que la ama tanto como ella a él. Pero ella sabe que no son más que palabras grabadas en una cinta y que Iván no se las dirá jamás personalmente.»
Pedro Almodóvar

com Fernando Guillén (Iván/Johnny) e Carmen Maura (Pepa/Vienna)

Johnny Guitar (1954) Nicholas Ray
excerto de GerardoGalan


JOHNNY
¿A cuántos hombres has olvidado?
VIENNA A tantos como mujeres tú, me imagino.
JOHNNY ¡No te vayas!
VIENNA Pero si no me he movido.
JOHNNY Dime algo bonito.
VIENNA Claro, ¿qué deseas oír?
JOHNNY Miénteme, dime que me has esperado estos cinco años. Dímelo.
VIENNA Todos estos años te he esperado.
JOHNNY Y que habrías muerto si no hubiese venido.
VIENNA Habría muerto si tú no hubieras venido.
JOHNNY Y que todavía me quieres, como yo te quiero a ti.
VIENNA Te quiero como tú me quieres a mí.
JOHNNY Gracias.

com as vozes de Ángel María Baltanás (Johnny) e Mari Ángeles Herranz (Vienna) em 1956 ou Sinón Ramírez (Johnny) e Matilde Conesa (Vienna) para a TVE em 1971



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